NOTAS SOBRE O CAPITALISMO 4.0 E A DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA (PARTE 1/5)

 
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Texto sobre economia, escrito por um não-economista, mas que mesmo assim pode valer a pena ser lido.

 

INTRODUÇÃO

Escrever sobre a fase atual do modo de produção capitalista (que muitos têm chamado de capitalismo 4.0, capitalismo cognitivo, semiocapitalismo etc) e não relacionar tal etapa à problemática da dívida pública brasileira (e seus mecanismos de formação e sustentação), para mim, em 2023, é algo tão inconcebível que nesta série de artigos nem irei tentar. Logo fica explicado o porquê do título do presente artigo.
 
Também vale esclarecer que a presente série de textos não se propõe a expor essas questões de modo ordenado e didático (o que seria de fato ideal), mas sim lançar mão de algumas concepções e conceitos acerca do momento que estamos vivendo, mais ou menos da forma (fragmentada) com que eu mesmo venho me apropriando do tema de uns tempos para cá. 
 
 
INICIANDO UMA CONVERSA
 
Precisamos começar por algum ponto. Como nenhum começo é absoluto (pois que conhecimentos subsidiam o entendimento do que está sendo tratado?) podemos fazer isso a partir do conceito de recessão econômica.
 
Recessão econômica, falando de forma bem simples, é a paralisação ou encolhimento da economia. Isso se reflete, por exemplo, em uma baixa taxa de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), diminuição do consumo e aumento do desemprego, apenas para citar algumas consequências. Em uma situação de recessão é comum que pessoas físicas e pequenas empresas precisem recorrer ao crédito para suprir suas necessidades de sobrevivência ou de investimento. Mas, com juros altos, esse acesso fica inviável e a economia não cresce.

Há um consenso entre os representantes do chamado mercado, de que juros altos são necessários para conter a inflação (aumento de preços). A ideia básica por trás dessa visão é a de que com tais juros (definidos pelo Banco Central [BC] via taxa Selic), pessoas e empresas desistem de recorrer ao crédito, diminuindo assim o consumo e consequentemente os preços, que não precisam aumentar em função da demanda. Ou seja, esse tipo de medida (aumento dos juros) considera que a inflação que se quer controlar é uma inflação de demanda.
 
Porém, em contraponto a essa visão, há os adeptos da chamada Nova Teoria da Moeda ou Teoria Monetária Moderna, que sustentam que subir juros não contém de fato os preços das coisas a longo prazo, mas apenas faz aumentar a famigerada "bolsa banqueiro", pois a remuneração da sobra de caixa dos bancos, bem como o pagamento de juros sobre juros da dívida pública, é feita com base na taxa Selic. Ou seja, com juros altos, os detentores de títulos do tesouro direto ganham mais.
 
Se está parecendo complicado entender esse ESQUEMA (sim, a palavra correta é essa, esquema!), vou tentar explicar melhor.
 
Todos nós, pessoas físicas e jurídicas, depositamos diariamente dinheiro nos bancos. Podemos dividir esse montante, tudo que é depositado, em duas partes: compulsório, que é a parte que o banco não pode emprestar, e sobra de caixa, que é a parte que o banco pode emprestar. Ou seja e é sempre bom lembrar: banco é um lugar que empresta o dinheiro que a sociedade deposita nele e o recebe de volta, acrescido de juros.
 
Com relação a sobra de caixa (parte do dinheiro que pode ser emprestada) o banco tem duas opções: (1) esse dinheiro vira empréstimo para pessoas físicas e jurídicas; (2) esse dinheiro é "captado" pelo próprio Estado através do Banco Central (BC)
 
Quando ocorre a segunda situação (sob o pretexto de não se liberar esse dinheiro na "praça" para que isso não gere inflação), o Estado Brasileiro torna-se devedor do banco, passa a ter uma dívida com ele. E como forma de reconhecer essa dívida, o BC emite a esse novo credor (o banco privado) um título do tesouro direto, um título da dívida pública brasileira. Com isso, o Estado passa, todo mês, a pagar ao banco privado juros sobre juros dessa dívida (também chamado de serviço da dívida), de modo que para o banco privado tal ESQUEMA mostra-se bastante vantajoso.
 
Portanto, o problema do tamanho da nossa dívida pública, desse percentual que hoje suga metade do orçamento do Estado (ver gráfico no topo desta postagem), é que ela não foi gerada em função do nosso desenvolvimento. Se tivesse sido, tudo bem, haveria um saldo positivo para a sociedade (que se refletiria em melhor infraestrutura, capacidade de investimento das pequenas empresas, diminuição do desemprego, maior poder de consumo das famílias etc). Mas acontece que a nossa dívida pública não é de fato uma dívida, pois não foi gerada para investimento no país. Trata-se simplesmente de um DRENO de recursos do Estado!
 
O artigo 192 da Constituição Federal de 1988, que versa sobre o limite de juros no Brasil (Selic), no dia seguinte à promulgação da Carta Magna já estava sob ataque. Depois de uma série de Emendas Constitucionais, do artigo 192 só restou o caput
 
 
RESUMINDO A HISTÓRIA
 
Portanto, estamos todos nós, brasileiros, totalmente à mercê dos mandos e desmandos do Banco Central "autônomo". Autônomo do governo, mas comprometido com o mercado e que por isso mesmo se sente livre para: 
 
(a) Realizar as chamadas operações compromissadas, que é a remuneração da sobra de caixa dos bancos, sob o pretexto de enxugar moeda do mercado, a fim de diminuir o consumo e conter a inflação. Os bancos poderiam emprestar essa sobra de caixa para o investimento social, mas eles não o fazem. Ao invés disso, a depositam no BC e recebem em troca títulos da dívida pública. Os detentores desses títulos passam a receber juros sobre juros dessa dívida, ou em outras palavras, passam a contar com o "bolsa banqueiro".
 
(b) Aceitar os chamados depósitos voluntários remunerados por parte dos bancos, sob o mesmo pretexto citado acima. 
 
(c) Fomentar a financeirização, principalmente através do mercado de compra e venda de "papéis podres", como contratos de swap (derivativos), debêntures, comercial papers etc. Sim, isso mesmo: esses títulos da dívida pública que os bancos recebem, além de garantir o "bolsa banqueiro", podem ser vendidos e revendidos no mercado financeiro. Eles ganham também assim! 
 
Todo esse mecanismo de favorecimento dos bancos, só faz aumentar os juros (o pagamento do "bolsa banqueiro" está vinculado à Selic) e acirra as desigualdades, pois o investimento social do Estado fica restrito em função do pagamento do serviço da dívida. 
 
 
AUDITORIA JÁ!
 
Tudo isso poderia ser desmontado com uma auditoria da dívida pública, que daria a real dimensão do quanto realmente o Estado brasileiro deve a esses credores. Esse esquema também poderia sofrer abalos com uma política de longo prazo de fomento da infraestrutura do país, que diminuiria o custo de produção e possibilitaria um trato diferenciado no controle da inflação que não apenas o aumento dos juros. Em suma, com juros baixos, todo dinheiro depositado nos bancos acabaria voltando para a sociedade, pois o empréstimo para pessoas físicas e pequenas empresas tornar-se-ia viável. Com juros altos, isso não acontece. 
 
Esse recebimento de juros da dívida pública, como mostramos, sai do orçamento federal. Isso gera falsa escassez de moeda na economia. "Falsa" porque o dinheiro existe, porém está parado e não na "praça". Melhor para os bancos, portanto, é eles serem eternos credores do próprio Estado. 
 
Os juros altos que os bancos oferecem para a sociedade faz com que essa sobra de caixa seja sempre grande, viabilizando as tais operações compromissadas. Conclui-se, então, que os juros no Brasil só irão cair quando a remuneração da sobra de caixa dos bancos acabar, for criminalizada. A consequência desse esquema, como dissemos no início, é a recessão. 
 
 
NEOLIBERALISMO
 
Outro aspecto de todo esse estado de coisas é que dívida pública elevada favorece medidas neoliberais como a reforma administrativa, pois o dinheiro que fica no orçamento estatal pode ser carreado para o pagamento da dívida. O mesmo se aplica às privatizações, pois o que se lucra com a venda das estatais termina da mesma forma. Por último, a ideia de superavit primário (um dos elementos do chamado tripé macroeconômico) se fortalece, pois tem que sobrar dinheiro no caixa do Estado para pagamento da mesma dívida. 
 
Gastos com a dívida pública estão, convenientemente, de fora do Teto de Gastos, que é restrito aos gastos primários (educação, saúde, segurança, assistência, previdência). Portanto, o problema do Brasil não é falta de dinheiro, mas sim um direcionamento correto de onde ele deve ser aplicado.
 
(Continua...)



REFERÊNCIA

AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA PÚBLICA. Que dívida o governo Lula irá herdar? Youtube, 7 nov. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zXNMXziP7iE>. Acesso em: 30 jan. 2023.