OCUPAÇÕES IRREGULARES EM ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE: A RELAÇÃO ENTRE MEIO AMBIENTE E POBREZA SOB UMA PERSPECTIVA DIFERENCIADA (PARTE 4/4)


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4.3. Carta Encíclica Laudato Si: uma visão (quase) essencialista da crise
Em 2015, conforme tradição do Vaticano de manifestar posicionamentos diante das grandes problemáticas da modernidade, no âmbito da chamada Doutrina Social da Igreja Católica (DSI), foi publicada a Carta Encíclica Laudato Si – Sobre o cuidado da casa comum, do Papa Francisco. Nela, o líder da Igreja traça um panorama sobre a nossa atual crise civilizatória sob uma ótica um tanto diferenciada das encíclicas anteriores: a partir da problemática ambiental.

Para Francisco, é importante que antes de conhecermos os sintomas da crise ambiental, consideremos principalmente "a raiz humana" dessa crise, que na Carta ele denomina de "paradigma tecnocrático". Esse paradigma é definido como a necessidade humana de transformação da natureza para fins úteis. Neste ponto e em se tratando do mundo contemporâneo, temos então dois grandes problemas, a saber: (1) nunca antes a humanidade teve, por conta de um desenvolvimento tecnológico que não foi acompanhado de um crescimento quanto aos valores e à consciência, tanto poder para subjugar a natureza; (2) tal poder está, neste momento, concentrado numa pequena parte da humanidade, que não tem dado nenhuma indicação de que pretende exercê-lo com sabedoria. Francisco também alerta que a hegemonia do "paradigma tecnocrático" se expressa na nossa incapacidade de prescindir dos seus recursos ou de utilizá-los sem sermos dominados pela sua lógica (FRANCISCO, 2015, p. 65-69).

Embora a Carta teça várias críticas a um desenvolvimento tecnológico em função do lucro; o que inclui financeirização e a ideia de que o crescimento do mercado é capaz de resolver o problema da fome e da miséria, Francisco é taxativo em sua visão quase essencialista da crise, quando afirma que programas políticos, mudanças na economia e força de lei, não serão capazes de evitar comportamentos que afetem de forma negativa o meio ambiente. Dizemos "quase essencialista" porque logo em seguida ele afirma que todo esse estado de coisas é reflexo da deterioração da cultura, sendo que a cultura pode ser entendida como algo que coletivamente (ou estruturalmente) se constrói. Neste âmbito, o cultural, o  excesso de antropocentrismo, a fragmentação do saber (em que a ciência parece ignorar o conhecimento gerado em outras áreas, como a filosofia e a ética social), e o isolamento das coisas, são elementos com os quais devemos nos preocupar (FRANCISCO, 2015, p. 70-77).

Ainda sobre a ruptura entre ética e técnica, o "paradigma tecnocrático" também produziu outra condição adversa no mundo do trabalho, que foi a redução dos custos de produção através do avanço da tecnologia, o que consequentemente reduziu as vagas de emprego. Para ele, os custos humanos são também custos econômicos. Dessa forma, "a técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder" (BENTO XVI, 2009 apud FRANCISCO, 2015, p. 79-80).

Por fim, Francisco (2015, p. 88) aponta para o fato de que não há uma crise ambiental e uma crise social, apartadas. E se não há, significa que as diretrizes para uma solução necessitam de uma abordagem integral, que envolva, simultaneamente, o combate à pobreza e a preservação da natureza.


CONCLUSÃO

Entender a relação entre meio ambiente e pobreza, sob a perspectiva de que esta última configura um agente da degradação ambiental, parece reforçar a ideia de que a sociedade colhe inúmeros benefícios de um modo de produção mais humanizado. Sendo assim, por que ainda é aceito que condições deletérias ao bem comum continuem crescentes em nossa realidade contemporânea?

Dentro de uma perspectiva estruturalista, podemos apontar o paradigma socioeconômico como um importante fato motivador do avanço das desigualdades sociais, na medida em que a reprodução do capital, na atual fase deste modelo, prescinde do elemento trabalho e precariza suas condições.

Sendo assim e no que diz respeito ao combate à pobreza, caso não seja possível fazer com que a produção pelo menos rivalize com a financeirização, que a "mais-valia social" e o "trabalho não pago" sejam, de alguma forma, revertidos em algum tipo de renda básica para a população. Mas também pensar a economia para além de diretrizes como tripé macroeconômico e teto de gastos, que inviabilizam o investimento social, faz-se igualmente importante.

Mas mesmo diante de tais soluções, meramente teóricas no que diz respeito à realidade brasileira e quiçá mundial, fica a pergunta diante da dúvida sobre a viabilidade das mesmas: Como resolver o principal problema inerente ao modo de produção capitalista, que é a geração de desigualdades?

Por fim, sendo a pobreza um fator de degradação da natureza (pelo fato do direito à moradia estar cerceado por um paradigma gerador de instabilidades), cabe estudar novas formas de combate à vulnerabilidade social, aprofundando as considerações colocadas na seção 4, mas também, por conjectura, pelo caminho da judicialização. Esta apontaria para a inércia do Estado no que diz respeito ao combate às desigualdades sociais. Um trabalho futuro, portanto, poderia verificar a viabilidade desta abordagem, visto que a Constituição Federal atribui ao Estado Brasileiro a garantia do direito à vida, sendo, o Poder Judiciário, um dos pilares do Estado Democrático de Direito.


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