OCUPAÇÕES IRREGULARES EM ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE: A RELAÇÃO ENTRE MEIO AMBIENTE E POBREZA SOB UMA PERSPECTIVA DIFERENCIADA (PARTE 1/4)


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INTRODUÇÃO
A relação entre duas problemáticas bastante evidentes no mundo contemporâneo, quais sejam, (1) a degradação da natureza e (2) o avanço da pobreza, é algo que vem ganhando cada vez mais espaço nas discussões sobre a nossa atual crise ambiental ou civilizatória. Tal assertiva encontra apoio, como será demonstrado, na Declaração do Rio de Janeiro Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992; e também nas recentes publicações do Painel Intergovernamental para a Mudança do Clima (IPCC). 
 
A necessidade de superação dessas duas problemáticas, apontada neste trabalho, não possui caráter utilitarista. Encerra, portanto, valor intrínseco. Mesmo assim, fica colocada a questão fundamental que parece ainda não ter sido consensualmente respondida neste cenário de discussões: se há o entendimento de que o bom andamento da sociedade passa, entre outras coisas, por ações de preservação dos ecossistemas naturais e combate às desigualdades sociais, porque vemos, no mundo moderno e em especial no Brasil, um crescente agravamento dessas duas condições adversas à justiça e à paz? 
 
Neste ponto, cabe destacar, embora saibamos se tratar de conceitos diferentes, que a palavra "pobreza" e a expressão "desigualdade social" serão tomadas, para efeito prático e no âmbito deste trabalho, como sinônimos. A justificativa para este tratamento é que entendemos se tratar de questões intimamente relacionadas. 
 
Portanto, pretendemos prestar uma contribuição no que tange a evidenciar a relação entre meio ambiente e pobreza sob uma perspectiva que se supõe diferenciada. Para tanto, o estudo se baseou nas metodologias do tipo bibliográfica, documental e qualitativa. 
 
Por último, o trabalho foi organizado da seguinte forma: na seção 2, a realidade que serviu de suporte para a nossa argumentação foi delimitada; na seção 3, ponderações sobre a relação que se intentou evidenciar foram feitas; por último, na seção 4, algumas causas para as duas problemáticas supracitadas foram sinteticamente postas.


2 A REALIDADE QUE SERVIU DE BASE PARA A NOSSA REFLEXÃO

2.1. O meio ambiente natural no contexto deste trabalho
A Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal nº 6.938/1981), descreve, no inciso I do seu parágrafo 3º, meio ambiente como sendo "[...] o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas" (Brasil [1981]). 

Por esta definição, é possível concluir, a despeito do que supõe o senso comum, que o conceito de meio ambiente é mais abrangente que o de natureza; embora a natureza configure um determinado tipo de ambiente. É o caso do chamado "meio ambiente natural", que como o próprio termo sugere, é o constituído pelos ecossistemas naturais, formados por componentes bióticos [1] e abióticos [2] , que sofreram ou não alguma ação antrópica [3]

Ainda sobre esta modalidade de ambiente, o Código Florestal Brasileiro (Lei Federal nº 12.651/2012), no inciso II do seu parágrafo 3º, assim define uma determinada categoria natural, importante para o presente estudo, que é a Área de Preservação Permanente (APP):

Área protegida [em zona rural ou urbana], coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (Brasil [2012]).


Já no artigo 4ª deste mesmo Código são definidos onze tipos de APPs, que podem ser assim listados: (I) "as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente"; (II) "as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais"; (III) "as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais"; (IV) "as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água"; (V) "as encostas ou partes destas com declividade superior a 45º"; (VI) "as restingas"; (VII) "os manguezais"; (VIII) "as bordas dos tabuleiros ou chapadas"; (IX) "topo de morros, montes, montanhas e serras"; (X) "as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros"; e (XI) a faixa marginal das veredas.

No entanto, para uma área ser considerada de Preservação Permanente, não basta que ela figure em alguma posição da lista acima. É preciso, também, que certas condições estejam postas. Os artigos 4º ao 9º dão conta desse detalhamento. No caso das restingas, por exemplo, é necessário que as mesmas sejam "fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues". Com relação ao entorno de nascentes e olhos d’água, é preciso que estes sejam "perenes". Inclusive, áreas não listadas no artigo 4º podem vir a ser consideradas de APP por Decreto do Poder Executivo, de acordo com as situações definidas no artigo 6º.

Para terminar, embora outros tipos de áreas protegidas também possam sofrer os impactos que serão descritos nos próximos tópicos — como é o caso das Áreas de Reserva Legal (ARLs) (Brasil [2012]); as Unidades de Conservação da Natureza (UCs) (Brasil [2000]); e também as categorizadas por estados e municípios — o segmento do "meio ambiente natural" a ser considerado no contexto deste trabalho é o das Áreas de Preservação Permanentes (APPs), tal como foram assim redefinidas [4] pelo atual Código Florestal Brasileiro.

2.2. O meio ambiente artificial no contexto deste trabalho
O artigo 182 da Constituição Federal de 1988 pauta a política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelo Poder Público municipal, com o objetivo de "ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes" (Brasil, 1988). 

Na busca pela regulamentação do texto constitucional, promulgou-se a Lei Federal nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, que entre os instrumentos definidos em seu artigo 4º, podemos destacar o plano diretor, o zoneamento ambiental e o estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV). Mas outra menção importante que aparece nesta Lei (art. 2º, XIII) é a da existência de um "meio ambiente artificial ou construído", portanto, diferenciado do "meio ambiente natural" que vimos anteriormente. Esta "nova" modalidade de ambiente, de acordo com Mazzini (2008, p. 330), constitui-se dos "elementos que formam o espaço urbano". 

Portanto, "meio ambiente artificial" pode ser definido como aquele ambiente outrora natural, alterado profundamente pela ação humana e que por isso não guarda mais suas características originais, podendo abrigar, por exemplo, assentamentos humanos e equipamentos públicos.

Outra importante norma que incide sobre o ordenamento das cidades é a Lei Federal nº 6.766/1979. Esta "dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano", definindo as diretivas que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão seguir para este fim. De acordo com esta norma, "o parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento", embora os entes federativos tenham autonomia para legislar suplementarmente sobre a "divisão de área de terra em unidades juridicamente independentes" (Rio das Ostras, 2010). 

Mas de modo geral, loteamento representa um tipo de parcelamento do solo que pode gerar urbanização, dando origem a um novo bairro ou divisão administrativa. Envolve a partição de um terreno em lotes para fim de edificação; com abertura, ampliação ou modificação de vias de circulação e de logradouros públicos. Já o desmembramento, este configura um tipo de parcelamento que incorre sobre determinado lote, logo não gera urbanização. 

A regularização de loteamentos e desmembramentos depende de Ato do Poder Público municipal, para que assim a chamada "função socioambiental da propriedade" [5] seja cumprida. Quando essa regularização não acontece, o parcelamento deixa de atender "às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor" (Brasil [2001]). É o caso, por exemplo, de um determinado tipo de parcelamento do solo, que por não ter sido submetido a qualquer processo de regularização, tende a se apresentar em total desacordo com a legislação ambiental e urbanística.

Portanto, o segmento do "meio ambiente artificial" a ser considerado no contexto deste trabalho, é o dos parcelamentos clandestinos [6], situados em áreas urbanas, empreendidos por populações de baixa renda.

(Continua...)



NOTAS
[1] "São os seres vivos que habitam determinado ecossistema. São os animais, plantas, seres humanos, microrganismos" (CUNHA; ZÔMPERO, 2013, p. 29).

[2] "Compreende aspectos físicos, como a luminosidade, temperatura e geoquímicos como o solo, água, ar, que [...] interagem com os componentes bióticos" (CUNHA; ZÔMPERO, 2013, p. 31).

[3] "É toda ação decorrente das atividades humanas" (MAZZINI, 2008, p. 33).

[4] As Áreas de Preservação Permanentes foram instituídas, na verdade, pelo primeiro Código Florestal Brasileiro, o de 1965 (Lei Federal nº 4.771/1965). Mas posteriormente, as mesmas sofreram novo arranjo pelo atual Código Florestal (Lei Federal nº 12.651/2012). Por isso diz-se que as mesmas foram "redefinidas".

[5] O Código Civil Brasileiro (Lei Federal nº 10.406/2002), em seu artigo 1.228, §1º, assim define como deve ser exercido o direito de propriedade para que sua função socioambiental seja cumprida: "O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas".

[6] O conceito de parcelamento clandestino é diferente do de parcelamento irregular. Mas este último não será objeto do nosso estudo por envolver uma definição muito ampla, que tomaria grande parte do espaço limitado que dispomos para desenvolver este artigo. Portanto, optamos por trabalhar com a realidade do parcelamento clandestino, termo autoexplicativo, que não carece conceituação.


REFERÊNCIAS
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