NOTAS SINGELAS SOBRE A LUTA DE CLASSES


O texto abaixo é uma narrativa sobre um período histórico ou tema, e não uma tentativa de explicação fechada das coisas. Narrativas existem aos borbotões e é bom lembrar que nem sempre uma precisa anular a outra.



[1] O que caracteriza a chamada "luta de classes" não é a animosidade do pobre para com o rico e vice-versa. Isso é ódio de classe. O que caracteriza essa luta é o conflito capital versus trabalho. Ou seja, a luta de classes existe na medida em que o capitalismo existe.

[2] O interesse do capital, que quer sempre crescer, e o interesse do trabalhador de se apropriar da Mais-Valia que lhe é tirada, é o que caracteriza esse conflito. Ou seja, trata-se de interesses divergentes e inconciliáveis, no âmbito do capitalismo.

[3] Mais-Valia-Social: os que não detém os meios de produção vendem sua força de trabalho e também pagam impostos para que o Estado organize o bem comum, de modo que as coisas funcionem. Mas para que o salário dos trabalhadores possa pagar os impostos, é preciso que esses trabalhadores possam se apossar de parte da Mais-Valia que lhe é tirada. Caso contrário, o trabalhador ganharia para comer e nada mais. Mas o que possibilita ao trabalhador se apossar de parte da Mais-Valia que lhe é tirada? Resposta: organização sindical, consciência política, consciência de classe etc.

[4] Mas já que o capital não consegue tomar toda a Mais-Valia do trabalhador na "fábrica", ele tenta recuperar essa perda nesses mesmos impostos. E de que maneira? Fazendo com que o Estado gaste com os detentores do capital e não com o trabalhadores. Temos aí um outro nível da luta de classes: o da apropriação da Mais-Valia Social. Política pública versus política do capital; política social versus política neoliberal...

[5] Ao contrário do que muitos dizem, o que está amortecida é a consciência de classe e não o conflito de classe. Em uma sociedade, a consciência de classe é alimentada por formação, informação, organizações (sindicatos, partidos), conjuntura, opções eleitorais, matriz econômica etc.

[6] A democracia, em termo teórico, não está contra ou a favor de uma dessas classes. Ela apenas dilui essa luta através das suas instituições sociais. Em momentos ditatoriais, podemos ver um acirramento desse conflito. Em revoluções, podemos ver um embate direto. Em uma democracia, podemos ver parte da classe trabalhadora apoiando projetos políticos que vão contra os seus interesses. Na verdade, o que se observa, muitas vezes, não é amortecimento desse conflito, mas apenas o fato de que ele se complexificou em função da conjuntura.

[7] Classe social, em uma ótica marxista, é uma posição dentro do mundo do trabalho. Se o indivíduo é detentor ou não dos meios de produção. Em cada um desses lados há variações. O meio de produção, por exemplo, pode ser uma fábrica ou um banco. O trabalhador, por sua vez, pode ser um profissional liberal, um operário especializado ou um analfabeto que realiza um trabalho braçal. Essa variação também varia o nível da consciência de classe de cada um.

[8] Outro fator que interfere na consciência de classe é o tipo de matriz econômica vigente em determinado contexto. Uma economia industrializada tende a gerar mais consciência de classe. Diferente de uma economia baseada em commodities, setor de serviços e financeirização. Aliás, com a financeirização, há uma diluição bastante acentuada do conceito de luta de classes, desse conflito que, como vimos, é inerente ao capitalismo.

[9] A despeito do que dizem, a luta de classes está mais viva do que nunca. Porém, os elementos desse conflito tradicionalmente identificados (burguesia e classe trabalhadora) na fase atual do capitalismo (capitalismo financeiro) assumem roupagens que muitas vezes turvam suas imagens. Afinal, onde está o "burgo", onde está a "fábrica", onde está a "mercadoria" necessária à reprodução do capital, onde está o "operário", onde está a "classe"? Eles estão por aí, é claro que não deixaram de existir. Mas a esse "caldo" do capitalismo atual outros elementos se fundiram aos anteriormente citados, do modo que o próprio trabalhador passou a se beneficiar do mercado financeiro e o burguês a não produzir mais nada.

[10] Por tudo isso, é que Wolfgang Streeck tem tentado uma nova abordagem da teoria marxista à luz dos tempos (sombrios) atuais, onde "burguesia" e "classe trabalhadora" viraram "povo do Estado" e "povo do mercado"; de modo que a política estatal tem que responder, tanto quanto possível e simultaneamente, a esses dois mundos em conflito, conforme resumido no Quadro 1.


Quadro 1: povo do Estado versus povo do mercado, em resumo.

Fonte: Adaptado de Streeck, 2018 (p. 63)
 

[11] Por tudo isso, num mundo complexo e financeirizado, para o trabalhador saber de que lado deve estar em situações que envolva questões trabalhistas e econômicas, sua dificuldade é maior do que foi no passado. Isso porque, no processo de diluição da consciência de classes, o mesmo trabalhador que tem a sua condição de vida precarizada por um mercado financeiro que acirra as desigualdades, também se beneficia da financeirização quando recorre ao crédito ou compra títulos da dívida pública. Por conta dessa complexidade, cresce o identitarismo no campo da esquerda. Neste ambiente confuso, enquanto trabalhadores, um bom critério seria o de procurarmos sempre uma posição que seja benéfica para o conjunto da sociedade.

[12] Neste ambiente, o Estado também se torna mais complexo, pois passa ele mesmo a tomar empréstimos de bancos para gerenciar o investimento social. A população, por sua vez, passa a comprar títulos da dívida do estado com esses mesmos bancos, enredando-se ainda mais no mercado financeiro, um mercado que, por ser financeiro, não tem cara. Desse modo, quem é o inimigo? No capitalismo produtivo a percepção da exploração é maior, mas no financeiro não é. O explorador não tem cara.

[13] Pelo fato da política ter se tornado mais difícil de entender e consequentemente o grau de participação política diminuir em função despolitização da população, é que ganha força o chamado populista de direita, aquela figura que simplesmente diz que vai "resolver as coisas". Como a população não sabe mais o que são as "coisas", é mais fácil então a adesão a esse tipo de proposta. 

 

REFERÊNCIA
STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: A crise adiada do capitalismo democrático. 1ª ed.  São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.